Análise da posição 2803
Nesta posição aloja-se o carbono amorfo, tomado como uma das modificações alotrópicas do carbono (há pelo menos três outras: a grafita - modificação cristalina mole do carbono, o diamante e os fulerenos, sendo que as duas primeiras são naturais e a última artificial). Nota-se que, consoante o ensinamento do prof. Geraldo Camargo, alotropia é o “fenômeno de um mesmo elemento químico formar duas ou mais substâncias simples diferentes, denominadas variedades alotrópicas do elemento”.
O texto da presente posição, bem como seu desdobramento no âmbito do Mercosul, como podem ser visto a seguir, demonstra uma certa confusão técnica, de natureza conceitual.
2803.00 CARBONO (NEGROS-DE-CARBONO E OUTRAS FORMAS DE CARBONO NÃO ESPECIFICADAS NEM COMPREENDIDAS EM OUTRAS POSIÇÕES
2803.00.1 Negros-de-carbono
2803.00.11 Negros-de-acetileno
2803.00.19 Outros
2803.00.90 Outros
Tal afirmativa se sustenta nos fatos apresentados a seguir, quais sejam:
1) A expressão “negro-de-carbono” corresponde, em inglês, a “carbon black” que, de acordo com a Kirk-Othmer Encyclopedia of Chemical Technology, é um “generic term for an important family of products used principally for the reinforcement of rubber, as a black pigment, and for its electrically conductive properties. It is a fluffy powder of extreme fineness and high surface area, composed essentially of elemental carbon”. Assim, a colocação do plural “negros-de-carbono” no texto da posição é equivocada, pois “negro-de-carbono” já é uma expressão genérica, e provém dos textos originais da NSH, em inglês (carbon blacks) e em francês (noirs de carbone). Esse equívoco avançou e se estabeleceu no Mercosul, haja vista o texto do item 2803.00.1;
2) A afirmativa anterior é confirmada pelas NESH da posição 2803, que arrolam as espécies contidas no “negro-de-carbono”. Essas NESH desnudam uma confusão técnica, em especial no que tange aos processos de produção, arrolando as mais destacadas espécies do gênero “negro-de-carbono”, que é equivocadamente, apresentado no plural, ou seja:
“Os negros-de-carbono (sic) que resultam da combustão incompleta ou do craqueamento (cracking) (por aquecimento, por arco voltaico ou por faísca elétrica) de matérias orgânicas ricas em carbono, tais como:
1) Gases naturais, tais como o metano (negro-de-gás-de-petróleo), o acetileno e os gases antracênicos (gases carburados pelo antraceno). O negro-de-acetileno, muito fino e puro, provém da decomposição brusca do acetileno comprimido, provocada por faísca elétrica.
2) Naftaleno, resinas e óleos (negro-de-fumo).
Consoante o seu processo de fabricação, os negros-de-gás-de-petróleo também se designam por negros-de-túnel ou por negros-de-forno”.
3) As NESH da posição 2803 sequer exemplificam que “outras formas de carbono não especificadas nem compreendidas em outras posições” podem ser aí alojadas.
O gênero carbono da posição 2803 é composto por dois subgêneros, quais sejam, o “negro-de-carbono” e as “outras formas de carbono não especificadas nem compreendidas em outras posições”, onde se inclui, por exemplo, o carbono manufaturado, o carbono pirolítico, a espuma de carbono (carbon foam) e o carbono vítreo (glassy carbon).
A ASTM (Standard Definitions of Terms Relating to Manufacturing Carbon and Graphite, ASTM Standard C 709-90, Vol. 15.01, Philadelphia, Pa. 1991, p.189) apud Kirk-Othmer Encyclopedia of Chemical Technology estabeleceu que o “term manufactured carbon (sometimes called formed carbon, amorphous carbon, or baked carbon) refers to a bonded granular carbon body whose matrix has been subjected to a temperature typically between 900 and 2400ºC. The process involves mixing carbonaceous filler materials such as petroleum coke, carbon blacks, or anthracite coal, with binder materials of coal tar or petroleum pitch, forming these mixtures by molding or extrusion, and baking the mixtures in furnaces at temperatures from 900 to 2400ºC. Green carbon refers to formed carbonaceous material that has not been baked”.
O “The Harmonized System Commodity Data Base” apresenta duas mercadorias, do tipo carbono manufaturado, classificadas no código NSH 2803.00 (correspondendo no Mercosul ao código 2803.00.90), quais sejam: “carbon microbeads: carbonized powder, 99.0 percent carbon content” e “carbon microbeads: green powder, 93.0-94.0 percent carbon content”.
Segundo Büchner et alii o carbono pirolítico é o carbono obtido por pirólise em fase gasosa, posta em prática por “chemical vapor deposition – CVD”, do metano, etano, propeno, benzeno ou tetracloreto de carbono, em temperaturas maiores que 800ºC. Essa reação pirolítica ocorre tanto na fase gasosa quanto no substrato que é mantido aquecido (a temperatura do substrato pode variar entre 800 e até mesmo 3.000ºC, produzindo com isso diferentes tipos de carbono pirolítico e também grafite pirolítica, sendo que esta não se classifica na posição 2803).
Em relação ao carbono pirolítico a Kirk-Othmer Encyclopedia of Chemical Technology assim se expressa (in verbis): “pyrolitic carbons are carbon materials deposited on a heated graphite susbtrate, or other material, by chemical vapor deposition (CVD) at 800-2300ºC”.
Por outro lado, com respeito a espuma de carbono e ao carbono vítreo, Büchner et alii ensina que (in verbis):
“Glassy carbon and foamed carbon are also formed by the pyrolysis of carbon-rich materials, but in this case solid state pyrolysis at up to ca. 1000ºC rather than liquid or gas phase pyrolysis.
Thermosetting plastics i.e. nonmelting unfoamed or foamed organic polymers or polymers rendered nonmeltable by dehydration, crossilinking, cyclization or aromatization are used as starting materials e.g.: phenol formaldeyde resins; polyfurfuryl alcohols; poly(acenaphtalene) rendered nommelting by treatment with sulfur; poly(acrylonitrile) rendered nommelting by oxidation; phenol resin-impregnated poly(urethane) foam.
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Glassy carbon is a nongraphitizable modification of carbon with extremely samall crystallites (max. 10 nm) with a ribbon structure. The strong intertwining of the carbon ribbons is reminiscent of a polymer coil. (...) Glassy carbon is therefore isotropic and also extremely hard and brittle.
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Foamed carbon is also nongraphitizable (…)”.
Na atualidade, a fabricação do negro-de-carbono (carbon blake) é levada a efeito por duas distintas linhas, quais sejam, por combustão parcial ou por craqueamento. Essas linhas resultam em seis diferentes processos, apresentados sucintamente a seguir:
1) Combustão parcial. Quando se queima um hidrocarboneto numa atmosfera rica em oxigênio produz-se dióxido de carbono e água, ambos no estado gasoso. Neste caso diz-se que a combustão foi estequiométrica (a atmosfera rica também pode significar excesso de oxigênio). Contudo, a combustão que visa obter o negro-de-carbono é feita em atmosfera com insuficência de oxigênio (queima não-estequiométrica), resultando dessa maneira nos produtos principais monóxido de carbono (gás) e carbono (sólido), sem contar é claro em outros compostos obtidos em bem menores quantidadez (e.g., água e dióxido de carbono) e os originados das impurezas do hidrocarboneto (e.g., óxidos de nitrogênio e sulfeto de hidrogênio). Há quatro distintos processos para produção de negro-de-carbono por combustão parcial, quais sejam:
1.1) Processo da fornalha a óleo (oil-furnace process). Este processo consiste em nebulizar um óleo pesado, rico em hidrocarbonetos aromáticos, para a câmara de combustão de um reator, onde então é queimado em temperaturas de 1.200 a 1.900ºC e se apresenta como uma fumaça negra. Essa fumaça é resfriada, passa por ciclones e filtros, que retêm o negro-de-carbono.
Consoante Shreve et alii, o tamanho da partícula do negro-de-carbono, bem como sua estrutura, são vitais para seu adequado emprego em pneumáticos, sendo “estreitamente controladas mediante o modelo do bocal, a geometria da câmara de reação, a temperatura, o tempo de residência e a intensidade da turbulência gasosa”. Ademais, em relação ao produto produzido, esses pesquisadores asseveram que os negros-de-carbono destinados a indústria de pneumáticos “são divididos em dois tipos: para banda de rodagem (com 18 a 38 nm de diâmetro) e para carcaça (com 44 até 75 nm de diâmetro). Tipos ou graus especiais são designados atualmente mediante um sistema de numeração de três dígitos (...), em que o primeiro dígito refere-se à faixa do diâmetro da partícula, medido num microscópio eletrônico. Por exemplo, o antigo SAF (superabrasivo de fornalha) é designado hoje por N-110; o primeiro dígito indica a faixa de 11 a 19 nm no diâmetro da partícula”.
1.2) Processo da fornalha a gás (gas-furnace process). Neste processo em vez da queima de óleo pesado, rico em hidrocarbonetos aromáticos, utiliza-se, como matéria-prima, o gás natural. De resto este processo em tudo se assemelha ao de “fornalha a óleo”.
1.3) Processo lampblack. Trata-se do processo mais antigo e primitivo para a obtenção de negro-de-carbono.
Segundo a Kirk-Othmer Encyclopedia of Chemical Technology, o processo lampblack consiste basicamente da (in verbis) “burning various liquid or molten raw materials in large, open, shallow pans 0.5 to 2 m in diameter and 16 cm deep under brick-lined flue enclousures with a restricted air supply. The smoke from de burning pans passes through low velocity settling chambers from which de carbon black is cleared by motor-driven ploughs. In more modern installations the black is separeted by ciclones and filters. By varying the size of the burner pans and the amount of combustion air, the particle size and surface area can be controlled within narrow limits. Lampblack have a similar properties to the low area oil-furnace black. A typical lampblack has an average particle diameter of 65 nm, a surface area of 22 m2/g. (…) It has main use is in paints, as a tinting pigment where blue tone is desired. In the rubber industry lampblack finds some special applications”.
1.4) Processo das calhas. Shreve et alii ensinam que neste processo a obtenção do negro-de-carbono começa quando (in verbis) “se faz incidir uma chama de gás natural, queimando com falta de ar, sobre calhas de ferro (...), que têm um lento movimento alternativo sobre os raspadores, para remover os depósitos de fuligem. O tipo de negro de carvão produzido é controlado pelo modelo de queimador, pela distância do queimador às calhas e pelo suprimento de ar (grau de combustão parcial). Os rendimentos são sempre pequenos (...) O abandono rápido do processo das calhas se deve não só aos fatores associados ao baixo rendimento e ao custo do gás natural, mas também as necessidades elevadas de investimento em aço, aos problemas graves de poluição e ao desempenho um tanto inferior em conjunção com a borracha sintética (face ao desempenho aos negros de fornalha)”.
2) Craqueamento. Tem-se aqui a produção do negro-de-fumo por craqueamento térmico de hidrocarbonetos ou de suas misturas (e.g., gás natural e hidrocarbonetos aromáticos gasosos e/ou líquidos) numa atmosfera pobre em oxigênio, como bem ensina a Kirk-Othmer Encyclopedia of Chemical Technology, Shreve et alii e Büchner et alii. Assim, é um equívoco a afirmativa que se encontra nas NESH da posição 2803, qual seja, “craqueamento (cracking) (por aquecimento, por arco voltaico ou por faísca elétrica) de matérias orgânicas ricas em carbono”, visto que o craqueamento é térmico, não envolvendo, portanto, arco voltaico ou faísca elétrica, a menos que tal citação diga respeito ao procedimento para dar início a reação de craqueamento térmico, que, depois de iniciada, mantém-se pelo próprio calor gerado pela queima.
2.1) Processo térmico (thermal process). Consoante o ensinamento de Shreve et alii, “no processo térmico para negros de carvão, o gás natural é craqueado a negro de carvão e hidrogênio, entre 1.100ºC e 1.650ºC, numa fornalha revestida de refratários, em operação a dois ciclos (aquecimento e decomposição).
2.2) Processo acetileno (acetylene black process). Obtém-se por meio desse processo o negro-de-acetileno através da decomposição a 800ºC do acetileno. Vale observar que a escolha do acetileno deve-se ao seu alto teor de carbono (92%) e a sua capacidade de decompor-se liberando calor (reação exotérmica e que se sustenta), o que proporciona um processo contínuo de produção do negro-de-acetileno.
Conhecido os processos de fabricação do gênero “negro-de-carbono” convém observar que a utilização tecnológica do mesmo é imensa (e.g., permitem o aumento da resitência ao desgaste dos modernos pneumáticos). Assim, 70% da produção do negro-de-carbono é direcionada para a indústria de pneumáticos e os demais 30% se repartem em usos junto a outros produtos de borracha, tais como elementos automotivos e usos diversos diferentes daqueles onde está presente a borracha (e.g., pigmento de plásticos e tintas). Além disso, o carbono manufaturado, o carbono pirolítico, a espuma de carbono (carbon foam) e o carbono vítreo (glassy carbon) têm aplicações, por exemplo, na indústrias nuclear, espacial e elétrica, sem contar as indústrias química (e.g., produção de flúor e cloro) e de refratários.
Por fim, convém destacar exemplos de mercadoria contendo carbono “inorgânico” que não se alojam na posição 2803: grafita natural (posição 2504); os carvões naturais que constituam combustíveis sólidos (antracita, hulha, linhita), o coque, os aglomerados e o carvão de retorta (Capítulo 27); aguns pigmentos negros minerais da posição 3206 (negro de “alu”, negro-de-xisto, negro-de-silício, etc.); a grafita artificial e a grafita coloidal ou semicoloidal (principalmente, posição 3801); o carvões ativados e os negros de origem animal (negros-de-ossos, etc.) (posição 3802); o carvão de madeira (posição 4402); as fibras de carbono (posição 6815) e o carbono cristalizado em diamantes (posições 7102 ou 7104).
Cesar Olivier Dalston, www.dalston.com.br.
Fontes: NESH; CAMARGO, Geraldo Camargo. Química Moderna, São Paulo, Editora Scipione, 1997; BÜCHNER, Werner; SCHLIEBS, Reinhard; WINTER, Gerhard; BÜCHEL, Karl Heinz. Industrial Inorganic Chemistry, Weinheim (Federal Republic of Germany), VCH Verlagsgesellschaft: New York, VCH Publishers, 1989.